sábado, 15 de dezembro de 2007

Prosa Subsariana

São feitiços de amarras e cordas de mil cores. Feitiços de montanhas geladas e sopros disformes, mãos gélidas guiadas pelo vento que dança com as árvores nuas neste deserto de vida. A lua ilumina envergonhadamente o planalto, a neve cobre o chão e esconde as palavras da gélida brisa, que se levanta sempre que se sente ameaçada pela imensidão do esquecimento que se perpetua naquele local. Mas nada te acolhe quando cais dos braços de Deus. A tempestade levanta a claridade da noite e abraça-te, aconchegando-te ao seu peito, protegendo-te de criaturas que aqui habitam. Gelada e mordida pelo frio, assumes uma posição fetal e assim tentas adormecer a dor do anátema.

Trazias toda a África ainda cálida no corpo. Todas as savanas podiam ser encontradas no negro do teu corpo, e era fácil perdermo-nos nessa mística primordial. Todos os dias queimados pela fuligem imperdoável de um sol tropical que brilha junto à linha do equador existiam em cada gesto que ensaiavas, e podia-se ouvir na tua pele o som de um mocho-de-orelhas africano escondido atrás das folhagens, camuflado de medo na vigília perpétua do ser ameaçado por predadores. Tinhas contigo essa tepidez que não se podia fingir, que era capaz de empurrar os invernos para fora de Dezembro. Mas agora, estremeces o corpo outrora fornalha de paixão num espasmo sempre ainda incompleto de hipertermia melancólica.

Por baixo dos escapartes inertes à tua passagem, respiravam olhos de marfim que te seguiam atentamente. Delineando o teu corpo desnudo, lambendo os ávidos lábios, saboreando o gelo na ponta dos dentes aguçados.

Mais a sul de ti, onde os tremores de terra sao contínuos, bem no centro da fogueira vislumbra-se uma máscara de arrependimento. A tua face é sol, a tua alma é gelo e o teu coração bamboleia como um tambor de guerra, enquanto cordas de mil cores e feitiços de mil línguas te prendem a liberdade. O vento acalenta-te o espírito e as suas mãos guiam-te a alma para bem longe, de volta ao sol que deixaste para trás. Aqui, enquanto tentavas embutir pérolas na fibra metálica inquebrantável da alma eléctrica, a pureza de ouro do watt tingiu-se de erro. Juntaste tudo o que tinhas, coaste delicadamente essa totalidade, e deixaste fugir toda a inocência, restando-te apenas o pecado.

Tu sabes: agora, é a hora para rasgar esses feitiços e enxotar essas cordas e voltar ao perdão inicial, enquanto uma ternura embacia a janela por onde olhas o horizonte, tua redenção.

O horizonte, tua missão.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Nenhuma Ideia

Começa por um voo, seguindo numa linha rente à costa marinha, pairando metros acima da gravidade. Paira, assim, numa ebriedade insuspeita, como se tivessem limpo o registro do teu cadastro.

Hoje, avarias-te na propulsão das coisas mais leves que o ar – sustentáculos do céu. A inconstância, a espada segredada, ser-te-à motor afinado nas correrias quase pecaminosas. Aguardas a premonição do mar, o grito silencioso interior que te desperta a ponta dos dedos, e talvez um indício de visão.

Dá continuidade ao ser acorrentado dentro de ti, suspenso no ar rarefeito do teu hálito de mentol. Um laço que completa a justaposição da vida e do simples acto de respirar. Aqui, nesta cidade de áleas perdidas o teu mapa é feito de cinza, perdendo-se em tudo o que toca. Do cume da montanha mais alta ao calabouço da fauna marítima o vento afasta as cinzas que te perfazem num remoinho de perda existencial.

Saberás onde é o teu lugar neste mundo?

Saberás que estrada junto ao campo te leva à casa onde o teu corpo descansa?

Saberás adormecer um corpo no fogo volátil, limpando-nos do que poderia ter sido?

Dobras-te nua, enlaçada em seda, enquanto a luz tímida trespassa o escasso espaço deixado aberto na janela. Um murmúrio de vermelho vem englobar-te.

( Um barco atraca na Doca de Alcântara. Os marinheiros, portadores de peles pesadas e gastas, convidam a terra a reencontrar-se com os seus olhos. Ao fundo, já os bares começam a sua rotina de movimento, e já os copos tintilam um som de asas de mariposa. Uma viúva olha o rio, como se isso redimisse algum deus.)

Um vulcão entra em erupção – a lava escorre incandescente – no teu ventre.

A janela de oportunidade esgueira-se um pouco mais, afastando-se de ti enquanto convida a miséria a entrar para te fazer companhia. Apenas o tempo dirá se foste concebida para esta cama onde agora te esticas e fechas túneis de pirâmides escarlates oblíquas nos teus olhos perdidos no corpo de um estranho que volta para as suas tágides que lhe cantam no ouvido. Nunca foste mais do que um carril para percorrer o caminho até elas. Percebes agora como te enganaste no caminho e onde é o teu lugar na vida desta cidade.

Sombreias o tacto resplandecente até não ouvires mais o seu canto. O filme acabou. Tu permaneces aqui.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Cume

Paredes de bocas abertas comem as cinzas dos seus antepassados enquanto os seus olhos oblongos manifestam o desejo de regurgitar as vidas que consomem. Subi a montanha de paredes e bocas e no seu cimo encontrei o sítio onde Ele esconde os seus comandos. o mundo a meus pés no dia em que Deus desceu à Terra.

E no topo do mundo póstumo, jaziam as caixas de correio cheias de cartas desesperadas àquele não presente. Alguns envelopes carabinas descarregadas estavam mesmo espalhadas pelo exíguo chão. Havia tanto silêncio que ainda se escutava a pulsação da tinta dos escritos. A face de Deus era um túmulo aparafusado ao limiar dos cumes possíveis. O silêncio suficientemente silencioso para se ouvir o vento a sussurrar de entre as nuvens, afastando o sol do solo um pouco mais. Rasteirando o céu do seu expoente, no cimo da montanha, no seio do mundo.

O metal cantava a sua cantiga, amarga, oxidosa e as caixas abriram-se, e verteram pólvora por cima dos escritos, abafando a sua tinta pulsante em cima do silêncio. Era tudo morte, aconselhada pela psoríase de ferrugem do metal e, dentro de mim, detinha-se momentaneamente uma mágoa a tracejado por cima do vazio, sem aparente vontade de viajar para arquipélagos diferentes. Sorria a um sol que se esbranquiçava de temor e acenava-lhe adeus de um lugar sem esperança. Fechava-se a possibilidade dos fogos.

Ao abrir os olhos, notei que o tempo era esfaqueado e o relógio sangrava 3:32 da manhã. Receando nunca mais sair do topo da montanha, rezei para adormecer e assim poder ir lá buscar-me.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Um Dia Na Vida Do Sr. A.

Acabado de acordar, senta-se na cama, ainda com os olhos semi-fechados pela intensidade da luz que passa através das persianas. Levanta-se a custo e dirige-se para o banho, pára quando passa pelo espelho e fica chocado com o que vê. O seu rosto não vê um sorriso há quase 12 meses. A sua cara está tão desabituada a ser olhada que se esconde num esgar estranho e inconsciente. Não consegue encontrar na face vestígios da alegria que em tempos ali habitava.

A casa: uma imobilidade tenebrosa. O telefone descansa empoeirado, abandonado pelas vozes que em dias passados incendiaram os fios de cobre da linha telefónica. Ele sai do banho. Enquanto seca a cara, o dia promete ser pouco mais do que um dia. Até ser noite, que também será certamente apenas noite. Sai da casa de banho, vai abrir as janelas. Mas de nada serve. Tem dentro de si uma solidão que nenhuma janela é suficiente grande para deixar sair, que nenhuma corrente de ar é suficiente forte para varrer. Mas nas ruas cresce um tumulto de passos que ele ouve.

O barulho cresce a cada segundo, aproximando-se perigosamente da sua casa. O seu instinto foi fechar de imediato a janela, mas momentos depois algo lhe disse que essa não era a solução. O abandono em que vivia era fruto de um medo irracional de um dia ser chamado a ser definitivamente aquilo que realmente é. O barulho cessa.

A respiração ofegante de dezenas ou mesmo centenas de pessoas é tudo o que se ouve. E estão todos à sua porta. O espanto que o tinha tomado de sobressalto ainda faz o seu coração palpitar a uma velocidade vertiginosa. Pára por um segundo e pondera a situação. Num acto de coragem (ou estupidez) abre a porta para enfrentar a multidão.

Não se vê o fim da multidão. Dá alguns passos em frente. Sente-se o cheiro do suor das pessoas a arder nas narinas e as respirações a ressoar nos tímpanos. De súbito, todos os pés dão um passo fulgurante na sua direcção, e despontam numa corrida gritada atrás de si. Ele corre desesperadamente, corre pela sua vida à velocidade do instinto de sobrevivência que o faz temer toda aquela multidão que ainda o persegue com raiva e fúria e perseverança. Na sua mente vaporiza-se de novo a pergunta que lhe surgiu ao abrir a porta de casa: “O que querem eles de mim?”. As esquinas vêm-no passar como uma estrela cadente, ele não pára, desaparece a cada horizonte. Mas as pernas também falham e ele cai.

Num segundo a sua face é amparada pelo cimento e os seus joelhos queixam-se de tamanha queda. Ele tenta pôr-se de pé o mais rapidamente possível mas a horda que o segue já está demasiadamente perto de si e é por fim encurralado. "O que querem de mim?", a sua voz trémula ressoa no silêncio cansado dos outros. "Queremos-te a ti", diz alguém. "Todos nós", ouve-se mais ao longe. "M-mas, mas...", o espanto é incomensurável e não o deixa falar. Fica largos segundos sentado no chão a olhar para todas as caras estranhas que o rodeiam.

Imediatamente, todas as mãos se extendem para tocar-lhe, todos lhe passam as mãos em cima e de seguida vão-se embora. Debate-se, não resulta. Esperneia, não faz efeito. Passam horas de toques sujos, de como quem se lava da vida. Fica sozinho. Novamente sozinho. Mundialmente sozinho. Na rua agora deserta, os seus olhos encontram a montra de uma loja. Debaixo do neon esvoaça uma fita onde se lê: 14 de Fevereiro, dia dos namorados: promoções. Murmura para si mesmo:

- Meteram-me à venda outra vez.

E volta para a solidão da casa.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

As Paredes Da Tua Cama

É supérfluo pensar que somos melhores. O que nos distingue é o sexo. Não o género. O acto sexual em si. É desgastante, porém, pensar que como tu comes quem comes e porque comes, a escolha faz de ti quem és. A escolha preconiza-te como meretriz (puta) ou como somente uma pessoa de bom gosto (mau visto que ficámos de fora). A lista que passa na tua cabeça apenas os tem como modelos, mas seria hipócrita da minha parte não admitir fazer o mesmo. Bom modelos não, anorexia não é a minha cena. Mas. Voltando a ti, a tua escolha decide a tua personalidade (ou a falta dela). Ainda no assunto do sexo, nunca é suficiente para ti (suficientemente bom). Nós, os outros, espreitamos do lado de cá com o augúrio de um dia sermos escolhidos em breve. Tenho fé em ti, um dia irás acordar e pensar no que tens perdido. A pergunta é simples: sabes o que tens perdido?

*

Penso no que tenho perdido. Seria um pensamento megalómano poder foder todos os homens à superfície da terra e determinar aquele com melhor desempenho. O acto sexual em si, é desgastante, porém pensar que da maneira que como eu como quem como, a escolha faz de mim quem sou. Tenho no acesso restrito às minhas pernas abertas a determinação do reflexo visual da minha alma. Aos poucos, encontrei na água do sexo um método melhor para definir o meu reflexo. O espelho que me apresenta a minha própria face está não tanto no movimento incessante daqueles que me penetram, mas muito mais nas contracções do orgasmo. É nesses raros segundos que me encontro em mim, ou que outros me dão a conhecer de outro modo sem ser daquele que eu gosto? Será que alguém o quer fazer? Sejamos honestos, eu sou uma puta. Foder-me-ão de outro modo?

*

Boa pergunta. As tuas contracções dão-te a conhecer melhor do que o simples pensamento sobre quem tu serás. Sim, puta, mas nem por isso precisas de perder o sentido moral que está incito em todos nós e por conseguinte perder aquilo que te resta. Na verdade o sexo é para ti o oposto do que é para mim. Se pensares no orgasmo como o momento em que mais te aproximas de Deus então a tua fé resume-se àquilo em que és realmente boa (e porque não?). Nesta tua cama de pecado encontra-se o significado da tua vida. Mas chamar-lhe “acesso restrito” é um pouco como dizer que uma auto-estrada tem limite de velocidade quando ninguém o cumpre. Sejamos verdadeiramente honestos, tu não tens limite, aliás nem deves ter, limitares-te é limitar a humanidade sob um pretexto de “moralmente aceitável”. O teu sexo define-te. O teu sexo define-nos a todos.

*

Não sei, não sei, não sei. Não. Sei. Eu sei. Pouco mais procuro que isto porque mais sou que isto mas isto não é pouco. É um todo preso em poucos segundos que define outro todo que converge sempre para este momento. Criar um limite a isto seria mutilar a essência de algo maior, logo, negar-me. Não o posso fazer. Não posso inferiorizar a capacidade estender segundos e torná-los excelentes. Mesmo que isso feneça todos os outros. Não tenho possibilidade de optar sobre este poder. Não posso poder mais do que posso.

*

Seja feita a tua vontade...

terça-feira, 2 de janeiro de 2007

XIII

O descuido do teu mundo foi um problema do meu
O barulho que não fez foi o ruir do céu
Para quê voltar para trás se nada nos espera
Resta agora olhar em frente
Enfrentar esta quimera


Doce esperança que é a virginal ninfa
Nascida trémula na nascente dos olhos jovens
E que escorre junta á linfa
No organismo de onde tu vens

Mas não,
Não olhes pra mim
Não sou capaz de suster a memória que esse olhar trás
Sem sequer reviver um dia de remorso incapaz
Tentei arranhar a escuridão
E o que trouxe debaixo das unhas foi um resto do teu 'não'
Tentei arranhar a escuridão
E pareceu-me tocar na tua mão

Compareci ao pôr-do-sol
Como um admirador sincero
Dos raios de sol que esticam os braços moribundos
Pelo ar austero.
Debatendo-se. Moribundos.
Vi o carro da noite passar pela minha rua a voar,
E agora os dias parecem interstícios entre dois negros profundos.
Eu perdi-me no mapa que estava projectado
Debaixo dos lençóis que puxaste para o teu lado.

Deixa-me parar o tempo
Tocar no sol sem tirar os pés do chão
Manter a esperança de um dia flutuarmos
Irei resgatar a compreensão e trazê-la até mim
Se só assim me podes ouvir
Imagina,
Se não me vês não me podes magoar
E tu não me vês,
Tu não tens noção do que é ver

Continuas tão cega como quando eras as ondas
Que alternadamente embatiam contra a falésia,
Desgastando-me, e eventualmente eu ruí.
Inoculei-te tantos dias
E hoje comprimo as veias no meu peito
Para te impedir de aromatizares o meu coração de novo.
Adio a placidez monovalente da minha forma de ver o mundo.

Os dias passados entre cetim
Que formaram rios de luxúria
Foram queimados
Acompanharam a cama numa última purgação
Usas-me debaixo das unhas
Como eu uso o resto do teu 'não'.

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

A Arte De Morrer

Duas da tarde, Teruel. Não sei se é a luz flamejante do sol ou a fornalha ardente do uniforme, mas o calor sua-me de esforço. As primeiras unidades penetraram no perímetro inimigo, mas a defesa bem montada emboscou-os. Estão presos dentro de casas abandonadas neste sector da cidade. Não sabemos quais. Estão cansados e limitados em munições. Esperar pelo apoio aéreo é entregá-los às mãos de soldados inimigos. Entrar na cidade é uma missão falhada.

O cheiro a éter assola-me as narinas, parece que ardem. Acordar assim todos os dias não era o meu sonho. A enfermeira diz que a situação está regularizada de momento, mas atrás das palavras esconde o medo de não me ver acordar amanhã. Sempre que o médico entra no quarto ela cala-se e olha para mim num esgar de preocupação. Sorri para me acalmar. “Então como é que estamos hoje?” – a minha resposta não muda nunca: “Na mesma, a mesma dor, nos mesmos sítios”. Mas hoje existe uma novidade, vi-o nos olhos da enfermeira, vinham a brilhar, se de alegria ou tristeza não sei. “Trazemos-lhe boas notícias“ – disse-me ela, olhando directamente para a minha alma. “É, mas não sabemos até que ponto são realmente boas” – contrapôs o médico. Ao que parece existe uma solução, uma cura, mas a cura pode antecipar a morte.

A explosão de raiva e ódio ouve-se como pano de fundo da conversa dos oficiais. Tácticas e manobras são discutidas e pensadas, nós, meros soldados aguardamos impacientemente pela ordem. Entrar na cidade em busca do inimigo, arriscando a vida e honra ou ficamos aqui a aguardar o erro dos outros? A decisão não é minha, a mim cabe-me acatar ordens e dar a vida por aqueles que defendem a liberdade. A minha mente divide-se e começa uma guerra de hemisférios: fico aqui a aguardar a morte ou penso apenas em mim e nos que me são mais próximos e fujo? Honra em troca de nada ou vergonha em troca de uma vida poupada? A guerra lá fora não é minha, os ideais não são meus, porque devia eu lutar por eles?! A guerra lá fora pertence-me quer queira quer não, a luta envolve-me nos seus braços frios, chama por mim e pede que a ajude a parar. Que fazer quando a luta não é nossa, mas que nos reclama como sua? Os oficiais voltaram e vão-nos dizer o que fazer, porque não lutam eles? Porque tenho de derramar sangue quando são eles que o querem? Como vim aqui parar...? mas nada importa agora, eles vão falar, a minha mente queda-se.

A palavra soa-me punidora: opção. O que fazer quando a ultima tecedora nos pede para lhe indicar quando deve cortar o fio? O que queremos? Cortar o fio da vida e cair no abismo de olhos abertos e vivos ou agarrarmo-nos a ele e esperar que ele se quebre com o peso do nosso medo que enclausuramos nas pálpebras caídas? O receio roça o gelo pelo tronco e inutiliza os lençóis brancos do hospital. “A opção é sua, será respeitada” – Castiga-me um pouco mais a íntima compreensiva enfermeira, e o meu fraquejante curvar de lábios agradece-lhe sinceramente a atenção. É amanhã que tenho que saber se quero ou não tomar o medicamento experimental. Depois só me restará morrer, esquecido e sozinho ou vivo na memória ignorante daqueles que o farmaco pode salvar.

Aguardemos pelo reforço aéreo. Não é sensato arriscar o esquadrão todo por um número bastante reduzido de soldados. Mas o que é sensato na guerra? O que existe de sensato nas balas que perfuram o ar e a pele humana? Que sensatez há em reduzir vidas a números? Eu conheço aquelas pessoas, presas, despojadas de uma defesa justa. Quando nos abrimos para alguém, quando algo de nós que não é matéria se alonga para alcançar outra pessoa, e a outra pessoa incita o gesto, há algo nessas parcelas nossas que se funde. Tornamo-nos parte um do outro. Deixar a morte levar essa pessoa é necessariamente deixar uma parte de nós morrer. E de que nos serve percorrer mais alguns metros de tempo se não estamos acompanhados de nós próprios? Que vida pensam proteger estas altas patentes? Agora ergo a face, leio os mesmos pensamentos escritos nas lágrimas que untam os olhos dos meus companheiros. O desencravar de armas colectivo, a mais furiosa sinfonia do mundo, diz-me que essas lágrimas não vão escorrer em forma líquida. Vão escorrer em forma de 7 mm directamente aos corpos daqueles que ameaçam quem amamos.

O dia começa da mesma forma sem surpresas, o éter a arder-me as narinas, a cama branca como osso, e os tubos dentro do meu corpo. Mas a aparente paz acaba quando o cérebro me faz lembrar da decisão que terei de tomar. Ainda me estou a endireitar quando a face sempre simpática e preocupada da enfermeira entra no quarto, “Então é hoje que decide se luta ou fica à espera de um milagre?” – o tom inquiridor da sua voz ressoou nas paredes do quarto e fez-me estremecer. “Sim, é hoje”. Os seus olhos denunciavam a pena que ela sentia, mesmo tentando ser o mais fria possível o seu sorriso aquecia a alma de qualquer pessoa. “Então como é que estamos hoje?” – eu apenas olhei para a sua bata, não tinha força para lhe responder, seja como for ele já sabia a resposta. “O dia hoje será longo, é bom que se alimente” – disse o médico olhando para a enfermeira embora se dirigisse a mim. Ela nada disse, apenas anuiu. Sozinhos num quarto que cheirava já morte ela confessou-me o seu medo. “Como é que vou fazer se morrer? É o meu paciente favorito” – as suas palavras tão directas atingiram-me onde menos esperava e com o coração na garganta sorri e respondi-lhe o melhor que pude: “Quando é que a sua esperança se transformou em medo?” – ela sorriu delicadamente e administrou-me os tóxicos tal como fazia todos os dias. Quando o médico entrou com outros colegas e especialistas eu soube que tinha chegado o momento, ela não desviou os seus olhos e eu senti-me despido, sem segredos e não consegui quebrar o seu olhar que me lia como um livro aberto, mas que ao mesmo tempo me dava uma certa paz. “Então já tomou a sua decisão?”. “Sim...”.

Então só me restava uma possibilidade:
- Engolir o comprimido.
- Assaltar o perímetro.