quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Um Dia Na Vida Do Sr. A.

Acabado de acordar, senta-se na cama, ainda com os olhos semi-fechados pela intensidade da luz que passa através das persianas. Levanta-se a custo e dirige-se para o banho, pára quando passa pelo espelho e fica chocado com o que vê. O seu rosto não vê um sorriso há quase 12 meses. A sua cara está tão desabituada a ser olhada que se esconde num esgar estranho e inconsciente. Não consegue encontrar na face vestígios da alegria que em tempos ali habitava.

A casa: uma imobilidade tenebrosa. O telefone descansa empoeirado, abandonado pelas vozes que em dias passados incendiaram os fios de cobre da linha telefónica. Ele sai do banho. Enquanto seca a cara, o dia promete ser pouco mais do que um dia. Até ser noite, que também será certamente apenas noite. Sai da casa de banho, vai abrir as janelas. Mas de nada serve. Tem dentro de si uma solidão que nenhuma janela é suficiente grande para deixar sair, que nenhuma corrente de ar é suficiente forte para varrer. Mas nas ruas cresce um tumulto de passos que ele ouve.

O barulho cresce a cada segundo, aproximando-se perigosamente da sua casa. O seu instinto foi fechar de imediato a janela, mas momentos depois algo lhe disse que essa não era a solução. O abandono em que vivia era fruto de um medo irracional de um dia ser chamado a ser definitivamente aquilo que realmente é. O barulho cessa.

A respiração ofegante de dezenas ou mesmo centenas de pessoas é tudo o que se ouve. E estão todos à sua porta. O espanto que o tinha tomado de sobressalto ainda faz o seu coração palpitar a uma velocidade vertiginosa. Pára por um segundo e pondera a situação. Num acto de coragem (ou estupidez) abre a porta para enfrentar a multidão.

Não se vê o fim da multidão. Dá alguns passos em frente. Sente-se o cheiro do suor das pessoas a arder nas narinas e as respirações a ressoar nos tímpanos. De súbito, todos os pés dão um passo fulgurante na sua direcção, e despontam numa corrida gritada atrás de si. Ele corre desesperadamente, corre pela sua vida à velocidade do instinto de sobrevivência que o faz temer toda aquela multidão que ainda o persegue com raiva e fúria e perseverança. Na sua mente vaporiza-se de novo a pergunta que lhe surgiu ao abrir a porta de casa: “O que querem eles de mim?”. As esquinas vêm-no passar como uma estrela cadente, ele não pára, desaparece a cada horizonte. Mas as pernas também falham e ele cai.

Num segundo a sua face é amparada pelo cimento e os seus joelhos queixam-se de tamanha queda. Ele tenta pôr-se de pé o mais rapidamente possível mas a horda que o segue já está demasiadamente perto de si e é por fim encurralado. "O que querem de mim?", a sua voz trémula ressoa no silêncio cansado dos outros. "Queremos-te a ti", diz alguém. "Todos nós", ouve-se mais ao longe. "M-mas, mas...", o espanto é incomensurável e não o deixa falar. Fica largos segundos sentado no chão a olhar para todas as caras estranhas que o rodeiam.

Imediatamente, todas as mãos se extendem para tocar-lhe, todos lhe passam as mãos em cima e de seguida vão-se embora. Debate-se, não resulta. Esperneia, não faz efeito. Passam horas de toques sujos, de como quem se lava da vida. Fica sozinho. Novamente sozinho. Mundialmente sozinho. Na rua agora deserta, os seus olhos encontram a montra de uma loja. Debaixo do neon esvoaça uma fita onde se lê: 14 de Fevereiro, dia dos namorados: promoções. Murmura para si mesmo:

- Meteram-me à venda outra vez.

E volta para a solidão da casa.

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