quinta-feira, 9 de novembro de 2006

A Arte De Morrer

Duas da tarde, Teruel. Não sei se é a luz flamejante do sol ou a fornalha ardente do uniforme, mas o calor sua-me de esforço. As primeiras unidades penetraram no perímetro inimigo, mas a defesa bem montada emboscou-os. Estão presos dentro de casas abandonadas neste sector da cidade. Não sabemos quais. Estão cansados e limitados em munições. Esperar pelo apoio aéreo é entregá-los às mãos de soldados inimigos. Entrar na cidade é uma missão falhada.

O cheiro a éter assola-me as narinas, parece que ardem. Acordar assim todos os dias não era o meu sonho. A enfermeira diz que a situação está regularizada de momento, mas atrás das palavras esconde o medo de não me ver acordar amanhã. Sempre que o médico entra no quarto ela cala-se e olha para mim num esgar de preocupação. Sorri para me acalmar. “Então como é que estamos hoje?” – a minha resposta não muda nunca: “Na mesma, a mesma dor, nos mesmos sítios”. Mas hoje existe uma novidade, vi-o nos olhos da enfermeira, vinham a brilhar, se de alegria ou tristeza não sei. “Trazemos-lhe boas notícias“ – disse-me ela, olhando directamente para a minha alma. “É, mas não sabemos até que ponto são realmente boas” – contrapôs o médico. Ao que parece existe uma solução, uma cura, mas a cura pode antecipar a morte.

A explosão de raiva e ódio ouve-se como pano de fundo da conversa dos oficiais. Tácticas e manobras são discutidas e pensadas, nós, meros soldados aguardamos impacientemente pela ordem. Entrar na cidade em busca do inimigo, arriscando a vida e honra ou ficamos aqui a aguardar o erro dos outros? A decisão não é minha, a mim cabe-me acatar ordens e dar a vida por aqueles que defendem a liberdade. A minha mente divide-se e começa uma guerra de hemisférios: fico aqui a aguardar a morte ou penso apenas em mim e nos que me são mais próximos e fujo? Honra em troca de nada ou vergonha em troca de uma vida poupada? A guerra lá fora não é minha, os ideais não são meus, porque devia eu lutar por eles?! A guerra lá fora pertence-me quer queira quer não, a luta envolve-me nos seus braços frios, chama por mim e pede que a ajude a parar. Que fazer quando a luta não é nossa, mas que nos reclama como sua? Os oficiais voltaram e vão-nos dizer o que fazer, porque não lutam eles? Porque tenho de derramar sangue quando são eles que o querem? Como vim aqui parar...? mas nada importa agora, eles vão falar, a minha mente queda-se.

A palavra soa-me punidora: opção. O que fazer quando a ultima tecedora nos pede para lhe indicar quando deve cortar o fio? O que queremos? Cortar o fio da vida e cair no abismo de olhos abertos e vivos ou agarrarmo-nos a ele e esperar que ele se quebre com o peso do nosso medo que enclausuramos nas pálpebras caídas? O receio roça o gelo pelo tronco e inutiliza os lençóis brancos do hospital. “A opção é sua, será respeitada” – Castiga-me um pouco mais a íntima compreensiva enfermeira, e o meu fraquejante curvar de lábios agradece-lhe sinceramente a atenção. É amanhã que tenho que saber se quero ou não tomar o medicamento experimental. Depois só me restará morrer, esquecido e sozinho ou vivo na memória ignorante daqueles que o farmaco pode salvar.

Aguardemos pelo reforço aéreo. Não é sensato arriscar o esquadrão todo por um número bastante reduzido de soldados. Mas o que é sensato na guerra? O que existe de sensato nas balas que perfuram o ar e a pele humana? Que sensatez há em reduzir vidas a números? Eu conheço aquelas pessoas, presas, despojadas de uma defesa justa. Quando nos abrimos para alguém, quando algo de nós que não é matéria se alonga para alcançar outra pessoa, e a outra pessoa incita o gesto, há algo nessas parcelas nossas que se funde. Tornamo-nos parte um do outro. Deixar a morte levar essa pessoa é necessariamente deixar uma parte de nós morrer. E de que nos serve percorrer mais alguns metros de tempo se não estamos acompanhados de nós próprios? Que vida pensam proteger estas altas patentes? Agora ergo a face, leio os mesmos pensamentos escritos nas lágrimas que untam os olhos dos meus companheiros. O desencravar de armas colectivo, a mais furiosa sinfonia do mundo, diz-me que essas lágrimas não vão escorrer em forma líquida. Vão escorrer em forma de 7 mm directamente aos corpos daqueles que ameaçam quem amamos.

O dia começa da mesma forma sem surpresas, o éter a arder-me as narinas, a cama branca como osso, e os tubos dentro do meu corpo. Mas a aparente paz acaba quando o cérebro me faz lembrar da decisão que terei de tomar. Ainda me estou a endireitar quando a face sempre simpática e preocupada da enfermeira entra no quarto, “Então é hoje que decide se luta ou fica à espera de um milagre?” – o tom inquiridor da sua voz ressoou nas paredes do quarto e fez-me estremecer. “Sim, é hoje”. Os seus olhos denunciavam a pena que ela sentia, mesmo tentando ser o mais fria possível o seu sorriso aquecia a alma de qualquer pessoa. “Então como é que estamos hoje?” – eu apenas olhei para a sua bata, não tinha força para lhe responder, seja como for ele já sabia a resposta. “O dia hoje será longo, é bom que se alimente” – disse o médico olhando para a enfermeira embora se dirigisse a mim. Ela nada disse, apenas anuiu. Sozinhos num quarto que cheirava já morte ela confessou-me o seu medo. “Como é que vou fazer se morrer? É o meu paciente favorito” – as suas palavras tão directas atingiram-me onde menos esperava e com o coração na garganta sorri e respondi-lhe o melhor que pude: “Quando é que a sua esperança se transformou em medo?” – ela sorriu delicadamente e administrou-me os tóxicos tal como fazia todos os dias. Quando o médico entrou com outros colegas e especialistas eu soube que tinha chegado o momento, ela não desviou os seus olhos e eu senti-me despido, sem segredos e não consegui quebrar o seu olhar que me lia como um livro aberto, mas que ao mesmo tempo me dava uma certa paz. “Então já tomou a sua decisão?”. “Sim...”.

Então só me restava uma possibilidade:
- Engolir o comprimido.
- Assaltar o perímetro.

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